terça-feira, 15 de abril de 2008

AS VELAS ARDEM ATÉ AO FIM














Sándor Márai



Dois amigos, inseparáveis na juventude, reencontram-se 40 anos depois.
“ A amizade, pensava eu – e tu, que andaste mais pelo mundo fora, certamente sabes mais e melhor que eu, aqui na minha solidão campestre - , é a relação humana mais nobre que pode haver entre os seres vivos humanos. É curioso, os animais conhecem-na bem também. Existe amizade, altruísmo, solidariedade entre os animais. Um príncipe russo escreveu sobre isso… já não me lembro do nome dele. Há leões e galos bravos, criaturas de todo o género que tentam socorrer os da sua espécie que se vêem em apuros, sim, vi com os meus próprios olhos que, às vezes, ajudam também aos animais de outra espécie. (…).
Entre pessoas, vi menos exemplos. Para ser mais exacto, não vi nenhum. As simpatias que vi nascer entre pessoas diante dos meus olhos, acabaram sempre por se afogar nos pântanos do egoísmo e da vaidade. A camaradagem, o companheirismo, às vezes, parecem amizade. Os interesses comuns por vezes criam situações humanas que são semelhantes à amizade. E as pessoas fogem da solidão, entrando, entrando em todo o tipo de intimidades de que, a maior parte das vezes, se arrependem, mas durante algum tempo podem estar convencidas de que essa intimidade é uma espécie de amizade. Naturalmente, nesses casos não se trata de verdadeira amizade. Uma pessoa imagina – e o meu pai entendia as coisas dessa maneira – que a amizade é um serviço. O amigo, assim como o namorado, não espera recompensa pelos seus sentimentos. Não quer contrapartidas, não considera a pessoa que escolheu para ser seu amigo como uma criatura irreal, conhece os seus defeitos e assim o aceita, com todas as suas consequências. Isso seria o ideal. E na verdade, vale a pena viver, ser homem, sem esse ideal? E se um amigo falha, porque não é um verdadeiro amigo, podemos acusá-lo, culpando o seu carácter, a sua fraqueza? Quando vale aquela amizade, em que só amamos o outro pela sua virtude, fidelidade e perseverança? Quanto vale qualquer afecto que espera recompensa? Não seria nosso dever aceitar o amigo infiel da mesma maneira que o amigo abnegado e fiel? Não seria isso o verdadeiro conteúdo de todas as relações humanas, esse altruísmo que não quer nada nem espera nada, absolutamente nada do outro? E quanto mais dá, menos espera em troca?(…)
Vês, dediquei-me a essas questões teóricas quando fiquei sozinho. Naturalmente, a solidão não me deu resposta. Nem os livros deram resposta perfeita. Nem os livros antigos, os estudos dos pensadores chineses, hebreus e latinos, nem os modernos que falam sem rodeios, mas dizem sobretudo palavras e não a verdade.”


In: As Velas Ardem até ao Fim, Sándor Márai, Dom Quichote, 2006, pp81-83

1 comentário:

Anónimo disse...

Este excerto é uma belissíma reflexão sobre o que é ou deveria ser a amizade...e faz tremer todas as nossas ideias confortáveis sobre este sentimento.

Orpheu